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Alteridade: marco norteador!

     Se há uma palavra que acredito sintetizar o sentido da vida e da atuação política, essa palavra é a Alteridade. Enrique Dussel - professor autônomo da Universidade do México - é um dos grandes expoentes da Filosofia da Libertação e da Teoria da Alteridade, teorias pautadas no pensamento descolonial latino americano e de crítica sob a nossa realidade.
     Tal teoria pauta-se na ideia de que os povos latino americanos - por terem sido colonizados pelo países centrais europeus - até hoje possuem um pensamento dos países centrais sobre a realidade que estão inseridos, sendo um pensamento desconexo com a própria realidade que vivem. A teoria, então, nos alerta sobre as desigualdades sociais e as opressões existente na América Latina por conta desse domínio cultural, ideológico dos países centrais que perduram até os dias de hoje. Além disso, atenta para as próprias contradições existentes dentro dos próprias países latino americanos por conta das desigualdades sociais e a exploração das classes mais abastadas desses países.
     No Brasil, José Carlos Moreira da Silva Filho analisa a questão da alteridade influenciado por conceitos dusselianos no âmbito jurídico no livro "Filosofia Jurídica da Alteridade. Por uma aproximação entre o pluralismo jurídico e a filosofia da libertação Latino-Americana" afirmando que "Esse espaço de Exterioridade explicita-se, essencialmente, com a presença física do Outro, com a exposição do oprimido a partir da sua opressão, da sua inadequação a uma Totalidade. Frisar este aspecto é inverter o caminho, isto é, a partir do Outro para a construção da norma e não partir da norma para nela absorver o Outro."
      José Carlos, então, nos alerta acerca do quanto o regime jurídico pauta-se na opressão, anulação do outro. A norma não está preocupada com a justiça social, mas - na maioria das vezes - em apenas reafirmar e legitimar o poder do Estado. O Processo Penal, por exemplo, é apenas um reafirmador do poder punitivo do Estado. Os sistemas penais, mais especificamente, segundo o livro "Em busca das penas perdidas: a perda da legitimidade do sistema penal" do argentino Zaffaroni "valem-se de uma estrutura composta pela seletividade, pela reprodução da violência, pela criação de condições para condutas ainda mais lesivas, pela concentração do poder e corrupção institucionalizada." Perceber essa anulação do outro não é difícil quando olhamos as péssimas condições de vida e a falta de dignidade que os presos vivem no Brasil.
        A Alteridade além de ser um importante norteador para repararmos nas injustiças reinantes ao Outro do âmbito macro da sociedade, é também um bom marco de análise para as relações pessoais. Mário Sérgio Cortella no livro "O que a vida me ensinou" afirma que "o conflito é inerente à convivência humana - conflito é uma divergência de posição, de postura, de ideias, de atitudes. Conflitos são inevitáveis. O que não pode acontecer é que o conflito se transforma em confronto, que vem a ser a tentativa de anular o outro. Uma guerra nunca é um conflito, é sempre um confronto." Nesse sentido, a alteridade vem a ser o contrário de confronto, pois a alteridade é aceitar o outro, pois o nosso "própria eu" só existe a partir do outro, da visão do outro, da relação com o outro. E vai além, a alteridade significa segundo José Carlos "perceber o Outro a partir de sua peculiaridade intrínseca, ou seja, de não transformá-lo em uma extensão ou reflexo de quem o observa, é aceitar, em todos os níveis, a existência do plural, do diferente, de uma dimensão de Exterioridade." 
      Logo, se no plano macro a Alteridade serve para não nos calarmos diante das contradições sociais, no plano micro serve para termos sensibilidade com as pessoas que estão ao nosso redor, com as nossas relações pessoais. No plano micro é a alteridade um elemento norteador para que tenhamos cuidado e sensibilidade com os nossos familiares, amigos e amores, e até mesmo conhecidos. A alteridade serve como uma ferramenta para não "tecnizarmos" e não instrumentalizarmos as nossas próprias relações. 
     Isso porque nesses tempos líquidos - como diria Bauman - a alteridade serve como um alerta ao mundo individual, instrumentalista e mercantilista, na qual as relações se desfazem rapidamente, pois não criam laços e sim, pautam-se em interesses, ou seja, em um instrumento para se alcançar um objetivo pessoal ou caem no comodismo técnico do cotidiano. A alteridade é também uma crítica a indiferença, algo muito comum nas relações modernas. Isso porque a indiferença não se sensibiliza com a condição do Outro e nem se deixa influenciar pelo Outro. 
     Assim, a alteridade nos guia a pequenos cuidados sinceros como um telefone para um amigo que está longe; a compreensão e o carinho com familiares; o companheirismo e o compartilhamento nos relacionamentos amorosos. E ainda, a alteridade não se confunde com posse, nem obsessão. Preocupar-se, sensibilizar-se, olhar o Outro, não se mistura em sufocar o outro, em ter obsessão pelo outro, algo muito comum em relacionamentos amorosos doentios, no qual na verdade não há nem amor pelo próximo e nem a si próprio, e sim dependência pelo outro, o qual se relaciona com a instrumentalização das relações e não com Alteridade.
    Por esses motivos explanados que movo pela alteridade, pela sensibilidade, pelo amor àqueles que me relaciono, por aqueles que construo laços, em um movimento dialético e freiriano de construções e desconstruções de nós mesmos e do outro; pelo encontro, pela identidade e transformação de mim e do Outro. E é também a mesma Alteridade que me guia na luta utópica por um outro mundo, pela real efetivação dos direitos, pela construção da justiça social, ou seja, pela concretização do amor ao Outro expressos em gestos que resultem em igualdade e felicidade.

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